Escrito por: Matinal Jornalismo

Hospital da Restinga vira alvo de inquérito da Polícia Federal por suspeita de rombo

Governo Melo renovou contrato de terceirização da instituição para Associação Hospitalar Vila Nova mesmo após pareceres contrários de técnicos e alertas do Conselho Municipal de Saúde.

Maia Rubin/PMPA

Com contas reprovadas por técnicos da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e vícios de gestão apontados pelo Conselho Municipal de Saúde (CMS) desde 2019, o Hospital da Restinga e Extremo Sul é alvo de inquérito instaurado pela Polícia Federal (PF) a pedido do Ministério Público Federal (MPF).

Principal hospital público do extremo sul de Porto Alegre, a instituição é administrada desde 2018 pela Associação Hospitalar Vila Nova (AHVN), que venceu licitação realizada pelo gestor local, a SMS. Entre os problemas identificados na execução do contrato, estão despesas sem comprovação, pagamentos por serviços de terceiros feitos a gestores e servidores e descumprimento da norma municipal que condiciona contratação de serviços a análise de três orçamentos.

Um parecer técnico da prefeitura ao qual a Matinal teve acesso revela que, a cada inspeção da SMS, foram contabilizados milhões em recursos públicos com destinação sem comprovantes – ou seja, não foi possível saber se foram convertidos em atendimentos ou exames. Os técnicos encarregados da fiscalização exigiam a devolução desses recursos aos cofres públicos. A comprovação ou o ressarcimento de valores indevidamente desembolsados, de acordo com o parecer, não existiu. O montante ultrapassa hoje R$ 173 milhões. 

O parecer técnico que aponta o suposto desvio será debatido nesta quinta-feira (3) pelo Conselho Municipal de Saúde (CMS), que vem fazendo sucessivos alertas à SMS sobre os problemas. 

O contrato que entregou a gestão do Hospital da Restinga e Extremo Sul à AHVN é de 2018, assinado durante o governo de Nelson Marchezan Jr. (PSDB). A partir dos anos seguintes, todas as análises de execução financeira quadrimestral recomendaram a reprovação das contas. Os pareceres técnicos reprovaram valores de R$ 27,8 milhões em 2019, R$ 37,1 milhões em 2020, R$ 44,1 milhões em 2021 e R$ 64 milhões em 2022.

O secretário municipal de Saúde ao longo da maior parte desse período foi Mauro Sparta, que assumiu no começo do governo de Sebastião Melo (MDB), em 2021, e deixou o cargo em maio de 2023. Sparta foi deputado estadual pelo PSDB. 

Em agosto de 2023, mesmo com quatro anos consecutivos de prestação de contas reprovadas, a prefeitura renovou, por aditivo, o contrato com a AHVN para gestão do Hospital da Restinga. O CMS fez novamente um alerta sobre uma possível improbidade administrativa na renovação por mais cinco anos. O MPF tomou conhecimento das supostas irregularidades envolvendo a AHVN e a prefeitura e solicitou à PF a abertura de um inquérito, recentemente instaurado.

A Matinal teve acesso aos mesmos documentos encaminhados ao MPF e à PF. São mais de mil páginas com o detalhamento das inconformidades a cada trimestre desde 2018. Os apontamentos da fiscalização foram sendo sucessivamente ignorados, em sua maioria, pela entidade e também pela cúpula da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e pelo prefeito. Melo fiscaliza o orçamento da pasta via Comitê de Gestão Orçamentaria e Financeira (CGOF), vinculado por decreto diretamente ao Gabinete do Prefeito. Foram ao menos 11 despachos informando irregularidades aos mais diversos órgãos da prefeitura.

Além de renovar o contrato com a entidade privada em 2023, a administração Melo estreitou ainda mais os laços com o AHVN ao lançar o programa Agiliza, para reduzir as filas de cirurgia. O projeto, com aporte de R$ 55,6 milhões que não constava no orçamento previsto daquele ano, destinou parte da verba à entidade, o que novamente chamou a atenção do CMS. “Com tantas contas reprovadas, como o AHVN ainda estava na disputa?”, questionou a psicóloga Ana Paula de Lima, conselheira do CMS pelo segmento trabalhador e membro da Secretaria Técnica e da Comissão de Orçamento e Finanças (Cofin).

No primeiro chamamento público do Agiliza, publicado no Diário Oficial de Porto Alegre, não constava o nome da AHVN entre as entidades privadas habilitadas ao recurso extra do novo programa. O prefeito Sebastião Melo, então, destituiu a comissão que elaborou a lista e nomeou uma nova. Na listagem refeita pela então recém-criada comissão, o AHVN voltou a constar entre as entidades privadas que poderiam integrar o programa. “Novamente fizemos pareceres aos órgãos de controle de que a inclusão do AHVN feria a Lei das OSCs (organizações da sociedade civil) porque a entidade estava com a prestação de contas reprovada há quatro anos consecutivos”, disse a assistente social Maria Letícia de Oliveira Garcia, também conselheira do CMS e membro do Cofin.

Além do Hospital da Restinga e Extremo Sul, a AHVN gerencia dezenas de estruturas de saúde em Porto Alegre, com mais de 30 unidades de atenção básica, o Hospital Vila Nova, o Pronto Atendimento de Saúde Mental do IAPI e a Farmácia de Medicamentos Especiais (Celme).

Outros contratos também estão sob escrutínio. No caso das Unidades Básicas de Saúde (UBSs), uma reportagem da Matinal revelou um relatório do Tribunal de Contas do Estado (TCE) que identifica “graves distorções” nessas parcerias, celebradas não somente com a AHVN, mas também com outras três instituições.

Em 2022, famílias denunciaram à Matinal mortes por negligência no Hospital Vila Nova, outro hospital gerido pela AHVN. Os casos estavam sendo investigados pela Promotoria de Direitos Humanos, mas o inquérito foi arquivado.

De falta de recibos a pagamentos indevidos

Matinal também teve acesso a 11 documentos internos da prefeitura que demonstram o conhecimento da gestão municipal acerca da possibilidade de ilegalidades no contrato de gestão do Hospital da Restinga. Um despacho de março de 2022, assinado por uma diretora do Fundo Municipal de Saúde, órgão ligado à SMS, diz haver “indícios de irregularidades nas despesas executadas pela parceria”. Esse documento, que foi enviado à Equipe de Recursos de Saúde, relata dificuldade em obter a documentação necessária para verificar a lisura dos gastos da entidade e o cumprimento das normas pertinentes a esse tipo de contratação.

A servidora solicita “o mais breve possível” uma descrição dos fatos tidos como “prováveis irregularidades”, mencionando as leis infringidas. Ela demanda notas fiscais, comprovantes de pagamento, consulta de CNPJs de prestadores de serviço no banco de dados da Receita Federal e contratos entre a AHVN e as empresas que realizam atividades terceirizadas.

Em dezembro de 2022, um novo despacho é enviado pela diretoria do Fundo Municipal de Saúde ao Gabinete do Secretário Municipal de Saúde (GS-SMS). O documento dá conta de situações de quatro tipos. O primeiro é relativo a pagamentos de membros da diretoria por meio da rubrica “serviço de terceiros”. Demonstra haver diversas notas fiscais de empresas cujos sócios são administradores e/ou dirigentes com poder de decisão no hospital ou na AHVN.

Um dos casos mencionados trata de pagamentos realizados a um escritório de advocacia de um ex-diretor-geral do Hospital da Restinga e Extremo Sul, Paulo Fernando Scolari, que ocupou o cargo de agosto de 2018 a abril de 2022. Ele recebeu, em janeiro e dezembro de 2022, duas remessas da AHVN de R$ 54.973,70. O despacho diz que esses são “alguns dos pagamentos que conseguimos extrair”, referentes àquele ano.

Para estar conforme o manual da prefeitura de prestação de contas com parcerias, a entidade deveria apresentar três orçamentos para a contratação do serviço com o objetivo de atestar os valores de mercado e a escolha da proposta menos onerosa. A Equipe de Recursos de Saúde observa que isso “não tem ocorrido” e que tampouco são apresentados os contratos firmados pela AHVN com suas terceirizadas. O despacho menciona ainda que se trata de um valor “alto”, algo pouco comum em pagamentos a serviços de terceiros não previstos no plano de aplicação de recursos do hospital. Além disso, teria ocorrido sem conhecimento e autorização do gestor da parceria.

Há outro pagamento feito a um membro da diretoria do hospital por serviços terceirizados. À CV Serviços Médicos, na qual o ex-diretor do hospital Carlos Henrique Casartelli é sócio-administrador, foram realizados quatro pagamentos mensais de R$ 37.930,59, entre os meses de junho e setembro de 2022, totalizando R$ 151.722,36. As notas fiscais desses pagamentos se referem ao trabalho de “apoio administrativo”. 

Na época do despacho, Casartelli era diretor-geral do hospital. O documento aventa a possibilidade de haver outros pagamentos indevidos a diretores hospitalares, mas a Equipe de Recursos de Saúde não conseguiu acesso ao organograma do hospital. “Não há clareza em relação ao poder de mando e responsáveis no HRES”, diz o ofício. Casartelli, então filiado ao PTB, foi secretário de saúde na gestão de José Fortunati, substituído, à época, pelo atual titular da pasta, Fernando Ritter.

Há também pagamentos à empresa Stradolini Serviços Administrativos, na qual a gerente de Serviços de Saúde do hospital, Andrea Stradolini Freitas Volkmer, é sócia. Foram repassados dois valores:

R$ 24.564,94 em setembro de 2019 e R$ 37.930,59 em maio de 2022, sob a rubrica de apoio administrativo. A fiscalização considera que “possa haver recebimento concomitante como empregado celetista e prestador de serviços”, conforme menciona o despacho. 

Filha do presidente da AHVN é diretora-geral do Hospital da Restinga

Outra situação verificada pela Equipe de Recursos de Saúde é a remuneração de cônjuge, companheiro ou parente de dirigente na organização da sociedade civil celebrante da parceria, uma prática irregular. Um dos casos citados envolve a atual diretora-geral do hospital, Amanda Dal Molin, que assumiu o cargo em abril de 2023. Ela é filha de Dirceu Beltrame Dal Molin, presidente da AHVN, que gere o Hospital da Restinga.

Foram realizados dois pagamentos à AGD Assessoria Administrativa, da qual Amanda é sócia, em outubro de 2019 e maio de 2022, totalizando R$ 18.289,50. 

Amanda também aparece como doadora da campanha de Melo à reeleição, com uma contribuição de R$ 1 mil. O atual prefeito recebeu doações de mais de 110 CCs da prefeitura, como revelou a Matinal

O documento aponta haver pagamento de servidores públicos com a utilização de recursos do contrato entre a prefeitura e a Associação Hospitalar Vila Nova. Foi identificado, entre as despesas da parceria, o repasse às empresas T3 Serviços de Pediatria e à CR Rodrigues Assessoria e Consultoria Empresarial. O despacho não informa quais foram os valores despendidos, mas afirma que os donos dessas pessoas jurídicas são servidores públicos municipais na SMS.

A última menção do mesmo despacho trata de despesas duplicadas em serviços de recursos humanos. Entre as despesas diretas do hospital, constam serviços prestados pela empresa 4C’s Treinamento em Desenvolvimento Profissional e Gerencial, que tem como sócio-administrador o diretor-financeiro do Hospital da Restinga, Rafael Xavier.

Matinal procurou a Secretaria Municipal de Saúde e cobrou respostas sobre o contrato, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição. A AHVN também foi procurada e não respondeu aos questionamentos.